Desculpem-me se já contei esta
história. Às vezes acontece. Mas é ao passado que regresso uma vez mais. A um
final de dia de outono, quando os dias já eram curtos. Não me lembro de ter
frio, mas já era de noite e ainda estávamos na escola, por isso não podia ser
verão. A informação tinha vindo de um dos rapazes. Não sei se por acaso ou
inspiração, tinha descoberto o segredo, a chave que esperávamos, que todos
queríamos conhecer, mesmo que não o admitíssemos. Quando não estávamos a jogar
à bola, quando a adolescência já nos ia provocando umas coisas difíceis de
resistir, conversávamos sobre elas. Uns mais envergonhados que outros, atirando
com perguntas da forma mais disfarçada que podiam. Outros eram mais diretos,
porque sabiam mais, ou reagiam assim à insegurança e riam alto, mas sem gozar
com quem nada sabia. Não havia regra escrita e no entanto todos respeitavam.
Não é coisa para se gozar, ninguém escapava aquela sensação de vazio, antes de
começarmos a aprender.
O pequeno pavilhão ficava ao
fundo, nas traseiras da escola. Nem era bem um pavilhão. Tinha uma sala para
exercícios que não precisassem de muito espaço, um ou dois gabinetes e os
balneários. Era cá fora que fazíamos a maior parte das aulas, num pavimento colocado
para o efeito, mas que já revelava algum desgaste, ou problemas de fabrico, que
com um calcanhar bem batido se conseguiam produzir pequenos buracos no chão.
Mas ninguém se queixava. Era o que havia.
Alguém deve ter aparecido a
correr, forçando o suor no fim de tarde fresco e escuro. Alguém deve ter
aparecido de olhos a brilharem, com a informação que ouvimos, atentos, sem uma
única interrupção. Por incompetência ou mera circunstância, o balneário
feminino tinha uma porta de vidro que dava para o lado de fora. Por brilhante
sorte, o vidro era normal, sem nada que o impedisse de mostrar o interior. Não
era fosco, nem martelado. Não tinha aquelas películas que agora se usam para
reduzir o calor. Nada. O problema não deve ter sido difícil de identificar,
como um portal de magia que não cumpriria a sua função, de proteger as
raparigas, que dentro tomavam banho, se vestiam, se despiam. Consigo imaginar o
presidente do conselho diretivo aos gritos com alguém, que depois foi gritar
com outro, que por sua vez ordenou a um coitado do fim da linha que resolvesse
o assunto. A solução foi pura poesia, marcando o presente e o futuro, o nosso.
Não havia películas? Nem dinheiro para trocar os vidros? Não importa, pinte-se
a porta! Até disso me lembro, da pintura tosca, num branco sujo, pouco
homogéneo, com marcas de um pincel gasto, numas linhas horizontais e oblíquas.
O erro, perdão, o golpe de sorte
que mudaria as nossas vidas, foi uma simples troca de lado. O homem, que só os
homens descuidam estes pormenores, que pintou o vidro, fê-lo do lado de fora,
expondo a tinta aos elementos, ao sol e calor, à chuva e ao frio. E, mais do
que a estes, antes que outros pudessem produzir algum efeito, foi outra coisa
que nos abriu o mundo. Uma simples chave de casa, normal, nem sei de que casa,
ou de quem. Uma chave manobrada com perícia, raspando, afastando pequenos
pedacinhos da tinta branca, demasiado insignificantes para serem detetados por
quem estava dentro, mas com a dimensão suficiente, o tamanho perfeito para
encostar um olho, não mais, à vez pois claro, com sussurros e muito cuidado,
que o castigo seria severo. Não o de sermos apanhados, mas a privação de pela
primeira vez vermos aquilo com que já sonhávamos. Esperámos. Aguardámos que a
escuridão envolvesse o pavilhão por completo, que a luz interior realçasse o
fraco trabalho de pintura. Então, protegidos pela ausência de claridade no
exterior que nos denunciaria, aproximámo-nos com os corações a baterem e as
palmas das mãos frias, a transpirarem. Um de cada vez, rondando, sincronizados na
mesma emoção, espreitámos pelos riscos onde faltava a tinta. Respirámos fundo,
pressentindo que algo em nós iria mudar e vimos um mundo novo, que jamais
pudemos esquecer.